Onde estamos e para onde vamos
Andrea Zin – Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança, do Adolescente, Fernandes Figueira, (IFF/FIOCRUZ); Instituto Brasileiro de Oftalmologia (IBOL)
A prevenção da cegueira e deficiência visual infantil é uma das cinco prioridades da Inciativa Global da Organização Mundial de Saúde (OMS)/Agência Internacional de Prevenção da Cegueira (IAPB) “Programa Visão 2020 – O Direito à Visão”.
A 66ª Assembleia Mundial da Saúde, que ocorreu em Genebra, em 2013 aprovou um novo plano de ação global para a prevenção e controle da cegueira evitável: “Plano de Ação Global 2014-2019 para a saúde ocular universal”. Esse plano estimula os países membros a fortalecer os esforços nacionais para prevenir a cegueira e deficiência visual evitáveis, por meio de uma melhor integração da saúde ocular aos planos nacionais de saúde. O Brasil foi um dos países signatários.
A 73ª Assembleia Mundial da Saúde, de 2020, aprovou uma Resolução que convoca todos os estados-membros a implementarem as recomendações do relatório mundial sobre a visão, e especificamente a incluir o cuidado oftalmológico na cobertura universal da saúde.
Ao nascer, o ser humano não fala, não anda e enxerga muito pouco quando comparado à fase adulta. Para que o desenvolvimento da visão seja transcorra plenamente, é necessário que as estruturas oculares e do sistema nervoso, responsáveis pelo processamento visual, estejam normais ao nascimento e assim permaneçam nos primeiros anos de vida.
A visão é muito importante para o desenvolvimento físico e cognitivo normal da criança. O diagnóstico e tratamento precoce de situações que impeçam o desenvolvimento visual são muito importantes para a prevenção de cegueira e deficiência visual na infância.
As causas de cegueira infantil são muito diferentes das causas de cegueira no adulto. As estratégias para prevenção de cegueira adotadas para a população adulta não são eficazes para a população infantil. Os olhos das crianças não são uma versão em miniatura dos olhos adultos. Eles respondem de forma diferente ao tratamento, sendo necessário que os profissionais de saúde estejam adequadamente treinados e equipados para lidar com os problemas oculares da infância.
As principais causas de cegueira na infância e o número de crianças cegas na população podem variar amplamente de região para região, sendo fatores determinantes o nível de desenvolvimento socioeconômico, a disponibilidade de cuidados médicos primários, além da taxa de mortalidade infantil abaixo dos 5 anos. Como muitas das causas de cegueira infantil são também causas de mortalidade infantil, ao quantificarmos o número de cegos, consideramos apenas aqueles que estão vivos, sendo a magnitude do problema subestimada.
Não há um registro oficial dos casos de cegueira na infância no Brasil, mas dados disponíveis na literatura sugerem que há uma correlação linear entre a prevalência de cegueira e a mortalidade abaixo de 5 anos (reflexo do acesso aos cuidados de saúde), o que permite uma estimativa do número de cegos na população. Dados do IBGE mostram que o país conseguiu reduzir fortemente a mortalidade infantil nas últimas décadas. A melhora nas condições sanitárias, a urbanização e a maior assistência pré-natal com o avanço da cobertura de vacinação das crianças recém-nascidas contribuíram para a redução do indicador ao longo das décadas. A piora dos números em 2015 foi devida as inúmeras epidemias como a de Zika, principalmente, Dengue, Chikungunya e Febre Amarela. A taxa de mortalidade na infância na década de 1980 era de 69 óbitos para cada mil nascidos vivos, em 2018 esse valor foi de apenas 12,4 segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2018, de cada mil nascidos vivos 14,4 não completavam os 5 anos de idade. Em 2019, esta taxa foi de 14,0 por mil, declínio de 2,8% em relação ao ano anterior.
Assim sendo, pode-se estimar uma prevalência de cegueira no país de 3/10.000 (Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na Infância: detecção e intervenção precoce para prevenção de deficiências visuais). O Brasil é um país de dimensões continentais, com grande variabilidade regional nos níveis de desenvolvimento socioeconômico, e a prevalência de cegueira é, certamente, maior nas áreas mais pobres.
As causas evitáveis de cegueira são aquelas que podem ser totalmente preveníveis ou tratáveis para preservar a visão. Exemplos de causas preveníveis: todas as causas de cicatrização corneana, doenças infecciosas e Retinopatia da Prematuridade (ROP), em qualquer estágio. Causas tratáveis incluem catarata, glaucoma, e ROP grave. De modo geral, mais da metade das causas de cegueira são evitáveis. Nos países em desenvolvimento, a proporção de cegueira por causas evitáveis é maior que nos países desenvolvidos.
Há escassez de dados nacionais sobre o assunto. Porém, estudos em escolas para pessoas com deficiência visual e em serviços prestados para pacientes com “baixa visão” apontam como principais causas no Brasil a retinocoroidite por toxoplasmose, a catarata infantil, o glaucoma congênito, a retinopatia da prematuridade, alterações do nervo óptico e deficiência visual de origem cortical. A detecção precoce do retinoblastoma, embora não seja uma causa de cegueira importante, é primordial, uma vez que tem grande impacto na sobrevida do paciente.
A deficiência visual na infância e suas consequências provocam grande impacto quando se calcula o número de anos vividos que estas crianças terão pela frente com cegueira ou baixa visão, com maiores chances de atraso no desenvolvimento físico, neuropsicomotor, educacional, econômico e na qualidade de vida. Os problemas visuais em idade escolar mais comumente encontrados são os erros refrativos, que não causam cegueira, mas que se não forem detectados e corrigidos podem repercutir desfavoravelmente no desempenho escolar. Nesse caso, o desafio é promover o acesso àqueles com necessidade de uso de óculos à consulta oftalmológica e posterior aquisição dos óculos, de custo inacessível à grande parte da população.
A prevenção da cegueira infantil exige um esforço multidisciplinar conjunto, que envolve não apenas médicos (obstetras, pediatras, médicos de família, geneticistas e oftalmologistas), como também enfermeiros, agentes comunitários, assistentes sociais e professores. A prevenção se inicia com a realização de um bom pré-natal para identificação e tratamento de doenças infecciosas congênitas (toxoplasmose, herpes, citomegalovirus, sífilis e, mais recentemente, zika) e, se possível, aconselhamento genético para doenças hereditárias que afetem a visão (glaucoma, catarata).
Em diversos estados brasileiros, como Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Pernambuco e Ceará, para citar alguns, a realização do teste do reflexo vermelho antes da alta da maternidade é obrigatória por lei há quase 20 anos. Todos os recém-nascidos devem ser submetidos ao reflexo vermelho (TRV) pelo pediatra ou médico de família antes da alta da maternidade e pelo menos 2-3 vezes/ano nos 3 primeiros anos de vida. Esse teste não permite o diagnóstico de catarata, glaucoma ou retinoblastoma, apenas identifica a presença de alteração dos meios transparentes do olho (córnea, cristalino, vítreo). Caso o reflexo vermelho seja duvidoso ou alterado, a criança deve ser encaminhada o mais brevemente possível para diagnóstico por um oftalmologista. Hoje, o TRV está incorporado em muitas unidades de saúde e sua realização pode ser registrada na caderneta de saúde da criança do Ministério da Saúde. Mais uma vez, o desafio é conseguir que o paciente que teve acesso ao TRV, consiga uma consulta oftalmológica em tempo hábil para a confirmação diagnóstica e tratamento adequado, se necessário. Pelos dados colhidos no Portal de Transparência da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro em julho de 2020, notamos que se encontravam na fila, à espera de uma consulta especializada em oftalmologia pediátrica 4.580 crianças, sendo 158 pacientes na escala de prioridade vermelha, e o primeiro paciente na fila, de acordo com o segundo critério de prioridade que é a data de solicitação, foi inserido na fila em maio de 2017 (https://www.saude.gov.br/gestao-do-sus/programacao-regulacao-controle-e-financiamento-da-mac/regulacao).
Uma espera tão prolongada de 3 anos para uma consulta especializada pode resultar em perda da oportunidade de intervenção no momento adequado para evitar a instalação do déficit permanente de visão. Infelizmente, na maioria das vezes a janela de oportunidade para alcançar um resultado visual satisfatório é perdida, e a criança permanecerá cega ou com deficiência visual mesmo se operada tardiamente. No caso do retinoblastoma, essa demora pode custar a vida. Em um estudo realizado no serviço de baixa visão da Universidade de São Paulo (USP), entre 1998 e 2003, 75% das crianças com cegueira/deficiência visual por catarata haviam sido operadas, mas tiveram acesso tardio ao tratamento. A organização de uma rede integrada de identificação precoce, com encaminhamento ágil para centros de referência para o tratamento de problemas oculares na infância (catarata, glaucoma, estrabismo, tumores etc), adequadamente equipados e com profissionais treinados, ainda permanece um desafio no País. Isso sem falar na necessidade de centros para prescrição de óculos na infância.
Se avançamos muito em anos recentes, ainda há um longo caminho a percorrer para que as crianças nascidas em solo brasileiro não fiquem desnecessariamente cegas.
Fonte: Universo Visual